terça-feira, 12 de janeiro de 2010

De esperar e trabalhar

Estou na espera. Sou, quase me sinto, na espera. Um estado de ser, mais que estado de estar. Sou já a bastante tempo assim, na espera. Mas, melhor assim, que ser des-esperado. Esperar também é ser esperançoso, afinal. E enquanto espero, penso. E penso não só no que espero – penso também no que não espero. Espero voltar a estudar, mas se não volto, devo pensar no que fazer. Trabalhar, quem sabe, como se fosse a primeira vez na vida. Não que seria, mas talvez seja o primeiro “emprego” assim, do tipo de se submeter as demandas de produção de uma laia que quer lucros... Só trabalhei antes por minha própria conta, para organizações sem fins lucrativos, ou para o Estado – e ainda assim, só quando o Estado era tããão fraquinho que a comunidade tomava conta do trabalho por conta própria, sendo assim, as custas do Estado (e era um Estado que merecia ser “chifrado” assim, as próprias contas). Mas trabalhamos bem.

Um destes trabalhos públicos foi o melhor emprego que já tive na vida. Eu era pintor. Eu era um *bom* pintor. Pintor desses assim, de pintar parede de branco mesmo. Aprendi com as companheiras que já trabalhavam antes de mim. Era um trabalho de verão, a universidade não tinha aulas e contratava um grupo de uns 12 alunos para fazer todo o trabalho nos dormitórios. O nosso “chefe” em imediato era um ex-aluno, e escolhiamos entre nós mesmos supervisores de grupos para cada tarefa. No início do verão, todos trabalhavamos juntos, limpando os dormitórios. Era uma das melhores partes do trabalho. Entravamos nos quartos recém abandonados e encontravamos, no meio do lixo, muitas coisas boas também que os filhinhos de mamãe largavam pra trás. Móveis, utensílios domésticosde todos os tipos, até frigobars, livros, CDs, e todo tipo de coisa que entulhavam os dormitórios daquela gente. Chamavamos isso de “loot”, a despolia de guerra ou de piratagen.

Depois que separavamos as “spoils” do lixo, limpavamos tudo, e esvaziavamos os móveis a ser trocados. Depois disso, entravamos na rotina de verão: cuidavamos dos jardins e áreas externas quando a manhã ainda não estava muito quente, depois nos dividiamos em dois grupos: um para reconstruir as dry-walls, aquelas paredes de gesso-com-cartolina barata que se usa nos EEUU, e que apodrecia de ano em ano no clima húmido da Florida; o outro para repintar os quartos.

Nas primeiras semanas, as novas trabalhadoras revezavam nos dois grupos, para aprender os dois tipos de trabalho, e para decidir aonde levavam mais gosto e aptidão. Ao longo dos dias, os dois grupos se solidificavam, e ao fim do verão já tinhamos caráteres devidamente distintos – uns se orgulhavam do trabalho de se revezar nos buracos e da lizura de seu produto, outros se orgulhavam do trabalho conjunto de acabar um apartamento inteiro rapidamente, cada um tomando uma parede, e da brancura homogenea de nosso produto. E é claro, chamavamos os outros de preguiçosos e pulmão-de-pó, e elas nos chamavam de trolando-em-tinta e tolos por trabalhar todos ao mesmo tempo.

Mas não trabalhavamos todo o tempo. Na verdade, das 8 horas por dia que recebiamos, trabalhavamos mesmo, mesmo, só umas 4 a 6 horas. Dependendo do trabalho e de nosso gosto. Especialmente na maior parte do verão, pintar e refazer paredes, o time “plaster” levava certo tempo para preparar a massa. Enquanto um preparava, as outras descansavam. Enquanto outra rebocava, o resto descansava. E depois enquanto outro ainda limpava o material, denovo descanso.

Já o time da tinta levava menos tempo para preparar o material. Mas as vezes levava certo tempo para preparar o quarto. Afinal, como qualquer bom pintor sabe, é necessário passar fita nas janelas, nos rodapés, nas tomadas (ou retirar as tomadas), etc. Então, após o serviço de jardin, até preparar um apartamento, já era 10.30 da manhã, e não daria tempo de pintar tudo antes do almoço... e, é claro, não valeria a pena começar a pintar, ter que parar, embrulhar os rolos e pinçéis, as tintas, sair para almoçar, cheios de tinta, e voltar para tentar melhorar a estranha mistura de tinta fresca e tinta secando já em partes da parede... Então parávamos o trabalho as 10.30, descansavamos até meio dia, e depois de uma da tarde, aí sim começavamos a pintar. E como pintavamos bem, e como todos pintavam juntos, conseguiamos terminar o apartamento inteiro naquela tarde. Se estivessemos animados, dava tempo de limpar o material e preparar outros quartos também. No dia seguinte, entravamos, pintavamos, e terminavamos o serviço todo na manhã. Por que se chovia de tarde, era tão húmido que não dava para pintar (a tinta escorria pela parede e não secava). Aí agente usava esse tempo para preparar um quarto ou outro, mas ainda assim, só bastava preparar o serviço do próximo dia, ou dois, se trabalhavamos em quartos menores, em grupos menores. O resto do tempo então jogavamos cartas, liamos livros, tiravamos sonecas, as vezes a tarde inteira...

Ou seja, nós eramos donos de nosso próprio trabalho. Nós e nossas amizades moravamos naqueles quartos e apartamentos durante os anos. Nós escolhiamos quando e como trabalhar. Contanto que produzissemos o serviço, nosso “chefe” não nos daria nenhum trabalho. E ele trabalhou conosco antes, os mais velhos, assim como um de nós depois foi ser o “chefe” do novo grupo em um ano seguinte. Trabalhei três anos assim. No primeiro ano, era membro do time da tinta. Depois passei a ser o supervisor desse time. Eu que era “responsável” por coordenar as decisões de trabalho do grupo – incluindo as decisões de quando não-trabalhar – e garantir que o serviço ficasse bem feito e o material limpo no final do dia. Claro, minha posição era mais simbólica que funcional. Afinal, não tinha poder nenhum de forçar alguem a trabalhar. Se havia pressão, o grupo inteiro fazia essa pressão dizendo “pô, fulano, não faz bagunça assim por que então nós todos teremos que limpar, e isso sai do nosso tempo de descanso!” Eu agia, então, mais como representante do time da tinta, quando tinhamos que coordenar tarefas entre os times, do que um “chefinho.” Toda parede reconstruida tinha que ser pintada depois. Mas não só as paredes reconstruidas tinham que ser pintadas. Eram quartos tão cheios de fumo que as paredes amarelavam. Eram quartos tão cheios de artes de todos os tipos que as paredes se tornavam murais. As vezes, decidiamos deixar os melhores trabalhos. As alunas que morariam naquele quarto no próximo ano teriam de aprovar e adotar a arte. Se não, branco. Tinhamos mais liberdade nos apartamentos dos alunos mais velhos, pois lá sempre escolhiamos uma parede para dar uma cor viva ao ambiente. Eu gostava do vermelho vinho. Fiz esse no meu próprio apartamento.

No final do verão, trabalhavamos dobrado. Por escolha. Era um trabalho duro, pesado mesmo. Tinhamos que recolocar os móveis no lugar, sabendo quantos alunos em cada quarto ou apartamento. Carregar estantes de ferro acima e abaixo escadas, armários de madeira grossa, e colchões até não acabar mais. Mas era um trabalho conjunto, um trabalho curtido, e um trabalho que valia a pena fazer hora extra – era melhor trabalhar menos dias, mas longos dias, do que extender esse serviço e fazer se tornar chato e árduo. Assim, escolhiamos quando tiravamos nossas férias, e também escolhiamos quando fazer hora extra. Tiravamos toda a hora extra nas mesmas duas últimas semanas juntos. Recebiamos assim, logo após concluir o trabalho de verão, aquele pagamento gordão, mil contos ou mais, fácil fácil, por cada uma destas semanas. Durante o verão, não tinhamos dispesa, e não precisavamos de dinheiro. Mas também então, tinhamos mais dinheiro quando precisariamos de mais dinheiro, no início do semestre.

Alguns de nós mantinhamos o trabalho durante o ano, nas raras ocasiões que algum serviço necessitava ser feito ainda durante o semestre. Outros só voltavam no ano seguinte. Quem já tinha trabalhado antes já sabia trabalhar e conhecia os esquemas, era automaticamente recontratado (a não ser que a pessoa tivesse causado problemas para o grupo, então não voltava). Muitas outras pessoas queriam o emprego, as vagas que esvaziavam quando graduavamos ou não queriamos ficar no campus durante o verão. Então as trabalhadoras do verão passado se juntavam para ler as aplicações dos outros, e a escolha era feita baseada em nossa recomendação: quem trabalharia bem no nosso esquema, quem trabalharia bem em conjunto, quem produziria, com disciplina, com bom humor, e com a organização necessária para administrar nosso próprio trabalho, para manter nossos bons salários (que incluia habitação durante o verão inteiro) e continuar trabalhando como e quando decidiamos.

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