quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Dois da boca de trás do fogão...

Há dois assuntos sobre os quais amizades minhas tem me perguntado bastante mas eu não tenho escrito nada: minha visita a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) para uma plenária da Via Campesina, e um simpósio sobre as relações Brasil-China entre membros de seus respectivos partidos governistas.

Para mim, é interessante pensar nos grandes contrastes entre estes dois eventos, e talvez por isso tenha sido melhor para mim esperar até agora, que os dois já são passados e pensados, para escrever sobre ambos. Sei também que tenho pensado sobre que língua usar para escrever sobre assuntos como esses, que são perguntados a mim em Português mas eram os assuntos de maior interesse de minhas amizades Anglófonas. Solução: tentarei re-escrever sobre isso posteriormente em Inglês. Talvez por isso, tentarei dizer menos sobre os assuntos nas duas versões.

Primeiro, a ENFF, para quem não conhece, é uma instituição de educação superior e formação política construída pelo MST em Guararema-SP, que acaba de celebrar seus 5 anos de inauguração no início deste mês. O local é rural, mas rente ao perímetro urbano da Grande São Paulo, e o espaço é grande, inclui uma pequena área residencial para os que lá vivem e trabalham, uma área espaçosa para cozinhar, comer e se divertir em grandes grupos, uma área com boa estrutura para classes e encontros, seja em salas menores ou em plenária maior, além de uma pequena biblioteca e uma sala de computadores, bastante espaço com dormitórios para alunas em tempo-escola ou participantes de encontros, e por fim, muito mais espaço para criação de animais (vacas, coelhos), horta e pomar, e até um campo de futebol. Chamo atenção que nessa descrição se encontra um ambiente comunitário muito mais completo do que dispõem a grande maioria de instituições de educação de nosso país. Talvez isso seja devido ao "meio urbano" ou a falta de recursos, mas o fator predominante, em minha opinião, é a estrutura política que diferencia.

A ENFF foi construída como uma instituição de classe, por sua classe (ainda que com o apoio de pessoas vindas de todas as classes, como a contribuição de Sebastião Salgado da renda de seu trabalho sobre o MST, e também de Chico Buarque). Logo, a ENFF foi planejada para se conformar as demandas de educação apropriadas para esta classe - como o espaço residencial e dormitórios para os participantes em "ambas as pontas" da educação lá proferida. Para quem não leu minha descrição sobre o Instituto Educar, que visitei ano passado no Sul, vale ler para tomar uma noção de conceitos como tempo-comunidade/tempo-escola, que também compõe a estrutura da ENFF. Outra característica comum é a organização dos participantes (não só nos cursos regulares, mas também em encontros como o da Via no qual participei) em "núcleos de base" ou "brigadas" para compartir muito do trabalho do dia-a-dia. No entanto, na ENFF, a "brigada da casa" cuida de toda a produção por conta própria durante encontros.

A ENFF representa a capacidade das classes trabalhadoras de construírem sua própria sociedade. Vão construindo assim, aos miúdos, tijolo por tijolo e escola por escola, isso enquanto a disputa é aberta, mas a luta é abafada. De certo modo, representa a tática de acumulo de forças, mas diferencia criticamente da estratégia do PT de chamar ganhos eleitorais e burocratização de "acumulo de forças" ao invés do que realmente é, acumulo de cargos. As forças acumuladas na ENFF não são só concretizadas na educação e formação que muitos obtêm, ainda que esta seja sua mais clara expressão, mas também em todas as outras articulações e eventos que ocorrem naquele espaço (como a plenária da Via que presenciei). "Ter nosso próprio lugar, com toda infra-estrutura necessária, conforto, e orgulho que nós mesmas construímos" é, profundamente, a maior força que pode ser "acumulada" na ENFF por todas as pessoas que dela participam. Em termos materiais, os movimentos camponeses no Brasil, e o MST em particular, não necessitam da caridade e nem dependem da solidariedade, possivelmente instável, de nenhuma instituição (acadêmica, religiosa, sindical ou partidária) para as atividades de educação, formação, e auto-gestão que requerem tal espaço. E isso permite uma conquista ideológica de que realmente é possível que os camponeses, em solidariedade com as forças progressistas das outras classes, possam construir nossa própria sociedade.

Em relação ao encontro da Via em si, direi muito menos. Para discutir o conteúdo da plenária, as leitoras teriam de ser bastante familiares com a situação já por conta própria, e não caberia a mim ser o porta-voz de notícias melhor recebidas por outras vias. Mas para as que não são tão familiares, direi o que se passou a nível apropriado. Foi um encontro, o segundo, de nível nacional dos movimentos sociais e organizações que compõe a Via Campesina Brasil, para avaliar seu desempenho dês da primeira plenária, mais ou menos dois anos atrás, e se preparar conjuntamente para os próximos mais ou menos dois anos. A Via é composta das seguintes organizações no Brasil: MST, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Pastoral da Juventude Rural (PJR), Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB), Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal (ABEEF), e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

É relevante notar que nem todas as integrantes são explicitamente camponesas, como a CPT, a FEAB e a ABEEF, além do caso específico do CIMI (que nem uma organização explicitamente indígena é, mas de missionários). Isto por que a luta pela expansão e fortalecimento do território camponês é a linha de frente de uma luta mais ampla por soberania alimentar e poder popular. De todo o conteúdo da plenária, realçarei somente este: a necessidade feita explicita de expandir o leque de alianças para as classes trabalhadoras tanto na cidade como no campo. Quinze tratoristas, foi dito, poderiam paralisar a produção de centenas ou milhares de hectares, algo que levaria a mobilização de centenas de camponeses em ocupação para obter semelhante resultado. Ainda mais, diante de uma suposta ocupação, as trabalhadoras assalariadas são possivelmente alienadas da luta, e poderiam até ver no proprietário ou agronegócio um aliado de quem obtêm seu emprego e sua renda – a busca por aliança com trabalhadoras rurais assalariadas, então, poderia constituir um salto qualitativo na expansão da luta pelo território camponês. O objetivo seria materializar esta aliança para redesenhar o sistema de produção agrícola como um todo, inclusive as indústrias agrícolas.

Deixando de lado maiores detalhes sobre a ENFF ou a Via, sigo com uma descrição dos eventos em Brasília entre os partidos governistas do Brasil e da China. Este evento foi o terceiro simpósio entre os partidos, o primeiro ocorreu em 2007, e este foi dito o de maior participação, em sua grande maioria de membros do PT e de organizações aliadas e interessadas (como representantes do PSB e do PCdoB, de órgãos governamentais como ministérios e agências estatais, de sindicatos e de movimentos sociais). O programa incluiu três temas, sobre cada qual um palestrante Brasileiro e um Chinês discursaram e responderam algumas perguntas: a visão do Brasil e da China sobre a África, a visão dos mesmos sobre suas relações mútuas, e a visão dos mesmos sobre uma “nova ordem internacional”.

As palestras Chinesas foram tiradas diretamente dos textos entregues, que também seguiam diretamente a linha partidária promovida por membros mais acima na hierarquia, tanto em eventos domésticos quanto em visitas anteriores ao Brasil. As respostas que davam as perguntas também eram baseadas em maiores detalhes, especialmente estatísticos, sobre os mesmos temas já abordados em seus textos. Ou seja, não houve oportunidade nenhuma para se aprender nada de novo que não pudesse ser estudado por conta própria através de textos. Isto considerando somente o conteúdo das apresentações.

Em contraste, as palestras Brasileiras foram quase conversas soltas que seguiam mais ou menos a seqüência dos argumentos dos textos nas quais eram baseadas. As respostas, por serem ainda mais informais que os textos e palestras, continham não só um conteúdo mais explícito em termos de nomes de pessoas e descrições de eventos somente aludidos nos textos, mas também revelavam muito mais claramente a posição ideológica dos palestrantes e do partido e governo que representam. Não é que o conteúdo dessas palestras era informativo, pois o mesmo poderia ser aprendido, e com mais detalhes, em um estudo de textos, mas que esta diferença entre conteúdo-texto e conteúdo-debate faz mais explícito o que foi interessante e importante aprender durante o evento: as relações humanas por trás desta política.

Ora, se ninguém deveria atender estes seminários para ser informado, e o evento obviamente não definia linhas de política mas meramente as defendia, justificava, e propagandeava, só poderiam participar pessoas com três objetivos: primeiro, se alguém lá achava que estava sendo informado e sentindo-se beneficiado por esse conteúdo, era um bobo alegre que não se passa de alvo para as pessoas com o segundo objetivo, de propagandear a linha política pré-estabelecida em âmbitos muito menos discursivos e participativos. Isto é, o PT se encontra como governo com membros do governo Chinês e decide todo o fino e o grosso de suas políticas entre si (e notem também, com a África), e depois convida membros faladores entre sua base, seus aliados e movimentos sociais para justificar e propagandear suas decisões. Este era o objetivo formal do evento. O informal, o terceiro objetivo pelo qual alguém poderia estar por lá, era simplesmente de fazer seus próprios contatos, o que os Chineses chamam de guanxi e os estadunidenses de networking.

Aí que entra muita politicagem, e aí que entram muitas boas oportunidades também. Eu, por exemplo, conheci um filho do Wladimir Pomar que se formou como geógrafo e já trabalhou na área que estarei pesquisando – e este contato certamente me ajudará na obtenção de dados e mais guanxi para avançar minha pesquisa. A guanxi que outras pessoas fizeram por lá ficará para sempre “perdida” nas centenas de histórias daqueles momentos, e eu só lidarei com isso no contexto maior do evento como um todo. Veja, a função propagandista da delegação Chinesa era obviamente complementada com uma função de arrecadar informações sobre a “opinião pública” Brasileira sobre seu projeto. A guanxi feita entre a delegação Chinesa e algumas pessoas lá que poderiam articular o apoio a política delas em paralelo a sua própria (isto é, a do PT) são extremamente importantes na consolidação de um projeto global de industrialização guiado pela retórica de nacional-desenvolvimentismo.

O PT nunca esteve tão contente nos últimos vinte anos em falar de socialismo, quando o socialismo a ser admirado é o modelo Chinês, e os Chineses nunca estiveram tão preocupados em diferenciar sua relação com a África e America Latina dos Europeus e Estadunidenses – o que antes era chamado neo-colonialismo agora é chamado parceria para desenvolvimento. Seria como se a relação atual fosse “nova” somente por que se esquece que os Europeus e Estadunidenses também se justificavam (e seguem se justificando) que sua colonização era em nome “da civilização.”

Então, nós e a África, que antes “não éramos civilizados” e por isso “precisávamos” da colonização Européia, agora “não somos desenvolvidos” e por isso precisamos do apoio Chinês. Precisamos seguir fielmente o modelo de industrialização com mão-de-obra barata para exportação, precisamos atrair ainda mais investimentos estrangeiros, e precisamos apoiar um império econômico Chinês simplesmente por este não ser Estadunidense ou Europeu.

E ignoremos o fato de que a China já havia completado uma reforma agrária revolucionária, que seus trabalhadores então podem voltar para suas terras nos períodos de crise de superprodução, que seu mercado interno é subsidiado diretamente por um estado que elimina impostos dos camponeses reconhecendo sua dívida para com a classe que continua sendo posta em desvantagem com a política de industrialização... Por que se ignoramos isso tudo podemos até fingir que o nacional-desenvolvimentismo Petista conseguirá o sucesso do crescimento econômico, da industrialização globalmente competitiva, do estado de bem-estar social regularmente financiado.... isto é, podemos até acreditar que o PT conseguirá o que nenhum partido capitalista conseguiu: construir um país capitalista de liderança no mundo! E o PT conseguirá isso, lembre-se do esquecimento, sem ter que fazer a revolução socialista e a reforma agrária que a China havia feito!

Mas então, dentro deste clima áspero de justificativas para mais-do-mesmo, eu posso dizer que eu aprendi muito sobre como me comportar e lidar com esse tipo de gente. Pensei e discuti o tema bastante com uma pessoa que está acostumada a lidar com essas relações complicadas, com gente do tipo desses Partidos. Para mim, é uma mudança extremamente importante, de ativista estadunidense que se orgulha de falar-a-verdade-ao-poder, para alguém que para pra pensar sobre a situação e fica quieto, e quando fala, fala não para dizer uma verdade que será ignorada ou rejeitada, mas fala como Chinês – indiretamente, rodando em volta dos pontos de conflito, e buscando a posição estratégica para ficar por cima do inimigo antes que ele perceba o que está se passando.

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